Projeto de Extensão Ocupação Cais do
Porto Cultural UFRGS e
Coletivo Cais do Porto Cultural Já
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Foto: José Daniel Craidy |
A saga do Cais do Porto de Porto
Alegre parece aproximar-se de mais um momento decisivo quanto ao destino a ser
dado à área, que é um dos maiores patrimônios culturais e históricos da cidade.
Mais de uma década posterior à malfadada tentativa de privatização, a partir de
2010, o Cais é objeto de nova licitação pelo Governo do Estado, para que seja destinado
à exploração privada.
Assim como
da outra vez, a questão da reurbanização do Cais e sua reintegração à cidade,
apesar de se tratar de área no coração da metrópole e se destacar como identidade
de Porto Alegre, não foi objeto de amplo debate capaz de oportunizar a
sociedade e a cidadania, em suas variadas expressões, a discussão bem-informada
que esta histórica decisão requer. O déficit na construção coletiva e negociada
para o Cais é ainda mais emblemático pela postura contrária ao debate público por
parte da Prefeitura Municipal. A Prefeitura ateve-se ao estritamente
obrigatório segundo a legislação, evitando qualquer abertura de espaço para
discutir com a cidadania. Este fato é contraditório com a história participativa
da cidade e afronta os preceitos da gestão democrática previstos no Estatuto da
Cidade. Será triste, mas imperioso registrar nos anais da história de Porto
Alegre, que sua Administração Municipal não realizou sequer um único evento
público para ouvir seus cidadãos sobre a reintegração do Cais do Porto à cidade,
negando-se sistematicamente ao diálogo com organizações da sociedade civil.
Após os reduzidos
espaços para a discussão sobre o projeto para o Cais do Porto ocorridos durante
a pandemia, em 2021, e após as Audiências Públicas obrigatórias, em 2022, a
contestação que fizemos diante do risco de uma nova privatização, anunciada pelo
Governo do Estado após o rompimento do contrato de concessão, em 2019,
conseguiu abrir uma janela de diálogo com o Estado, para a qual contribuiu o célere
controle do Ministério Público de Contas, por meio do Dr. Geraldo De Camino.
A janela
democrática, todavia, se deu após o Governo do Estado ter decidido qual seria a
modalidade de concessão do Cais ao mercado privado. Mantida desde o começo a
opção pela privatização, definida pela forma de PPP (Parceria Público-Privada),
restou-nos defender a preservação do caráter público de uma parcela do Cais do
Porto, em especial no setor dos Armazéns, isto é, fora da exploração
comercial prevista pela licitação, a fim de que se possa realizar ali um outro
tipo de reintegração do Porto à cidade, com usos culturais e sociais, acessíveis
a todos e todas, independentemente de renda ou de quaisquer outras características
sociais e raciais, conforme apresentado no Projeto “Diretrizes para a Ocupação Cultural do Cais do Porto de Porto
Alegre”.
A
estratégia de mitigar os efeitos sociourbanos tendencialmente excludentes e
segregadores da privatização do espaço do Cais do Porto se justifica pela
necessidade de manter em pé nosso compromisso com o direito de todos e de todas
às cidades. Procuramos demonstrar – conforme experiências internacionais e
nacionais – e baseados em dados locais, que as privatizações de espaços urbanos
em geral causam seleção de público frequentador por critérios de renda, e que
isto divide ainda mais as cidades.
A partir desta situação colocada, e
apesar das enormes divergências conceituais e das estratégias econômico-financeiras
para a requalificação do Cais do Porto, iniciou-se um ciclo de negociações com
o Governo do Estado do RS, representado pela Secretaria de Parcerias
Estratégicas, com Leonardo Busatto e equipe. O movimento desencadeado em defesa
do Cais Público foi respondido pelo Governo do Estado com a proposta de destinar
os Armazéns A e B para fins culturais e sociais. Os dois Armazéns estão
situados no Pórtico Central do Cais do Porto.
Nas reuniões subsequentes, além da
demanda para que os armazéns A e B não constassem na concessão e permanecessem
do Estado, buscamos aumentar o número de armazéns que deveriam permanecer públicos,
assim como definir obrigações do futuro investidor privado com a requalificação
destes armazéns e com a área do Cais em geral, como forma de elevar as
contrapartidas privadas pelo direito de exploração comercial do Cais.
Sustentamos, nas discussões, que a
elevação da contrapartida privada é necessária para reequilibrar a relação
público-privada. A defesa desse reequilíbrio necessário fica ainda mais
justificável após a concessão de benefícios pela Prefeitura Municipal e a Câmara
de Vereadores, com o aumento considerável do valor imobiliário do terreno das
Docas, ao triplicar os índices construtivos mediante a alteração do regime
urbanístico e EVU. A permissão passou de 52 metros para 150 metros na altura das
construções. Além disso, a mudança permitirá o uso residencial na Orla central,
precedente que aumentará a pressão imobiliária que já ocorre junto ao Guaíba.
Ainda sobre o caráter público do
Cais, defendemos o livre acesso em todas as áreas, independentemente de seu uso
público ou privado, já que isto não ocorre atualmente na área cercada e
privativa do Embarcadero. Também propusemos que os armazéns públicos e
culturais sejam geridos em parceria com organizações sociais sem fins
lucrativos da cultura, como prevê por exemplo a Lei 13.019/2014 (apenas referência).
E que esta ocupação cultural seja planejada de forma participativa,
transparente e autossuficiente, desenhada por um projeto oriundo de concurso
público.
As discussões foram realizadas antes
da publicação do edital da licitação, com o compromisso assumido pelo Governo
do Estado de contemplar nele os acordos negociados. Foram estabelecidos, então,
alguns pontos indicados abaixo. Nem todas as propostas foram aceitas pelo
Governo do Estado. Além disso, algumas questões acordadas não foram
contempladas no edital. Ainda assim, optamos por minimizar os danos que serão
causados por esta histórica privatização – e a consequente elitização sociourbana
do Cais - de um dos maiores patrimônios culturais de Porto Alegre. Além disso,
optamos também por demonstrar a possibilidade real de construir, de forma
coletiva, participativa e democrática, uma outra maneira de recuperar esta área
icônica e transformá-la em patrimônio comum para o uso sociocultural e popular
da cidade.
Destinação
dos armazéns A e B e Pórtico para fins culturais de caráter público
Dentre os 11 armazéns, dois foram excluídos
da concessão para exploração comercial e, portanto, não estarão sob controle do
privado que assumirá o Cais do Porto por 30 anos. Esses armazéns permanecerão sob
guarda do Estado do RS, ou seja, públicos, devendo abrigar atividades culturais
e sociais por cedência de sua gestão a entidades e/ou organizações sociais da
cultura sem fins lucrativos, conforme edital de chamamento público para esta
finalidade pela Secretaria Estadual da Cultura do RS (SEDAC). Alertamos para o
risco de compartimentação do conjunto de armazéns, linha fina e elegante que
define uma das paisagens mais significativas da cidade, sob o risco de futuras
intervenções que venham a descaracterizá-lo.
Não obstante, o ente privado
concessionário do Cais do Porto terá a obrigação de custear a reforma física e
o restauro dos Armazéns A e B e Pórtico, assim como os custos decorrentes da
manutenção ordinária daquele espaço e dos serviços necessários (limpeza,
segurança, etc...), incluindo-se as despesas ordinárias com eventos que ocorram
neles. A customização do espaço para atividades culturais especificas são de
responsabilidade do gestor público ou do ente delegado por ele. Ou seja, ainda
que os Armazéns A e B e Pórtico tenham permanecido sob caráter público, o agente
privado concessionário assumirá perante eles as mesmas obrigações que terá com
os demais nove armazéns (reforma, restauro e manutenção). O custeio dessas
obrigações será contrapartida do
privado pelo direito de explorar comercialmente os demais armazéns e os três setores
do Cais (Docas, Gasômetro e o setor dos Armazéns).
Cabe destacar ainda que, nas
discussões com o Estado, levantamos a necessidade de o edital prever os
recursos necessários para equipar os Armazéns A e B e Pórtico, tornando-os capacitados
para as atividades culturais multiuso. E ainda, que o investimento deve ser de
responsabilidade da concessionária privada como contrapartida sua na PPP. Concordando,
o Governo do Estado indicou a previsão dos recursos na Conta de Encargos da
licitação e solicitou que apresentássemos a estimativa dos recursos necessários
para a equipagem dos armazéns. A partir do trabalho realizado por integrantes
do Coletivo Cais do Porto Cultural, o orçamento foi entregue com valor estimado
de R$ 5,398 milhões, discriminados conforme os equipamentos necessários nas áreas
internas dos Armazéns A e B. Foram previstos equipamentos para espaços multiuso
para espetáculos de teatro convencionais ou alternativos, dança, música, circo,
exposições de arte, estúdio de cinema e exibição de filmes, além de outras
atividades.
Todavia, para nossa surpresa, o item
acordado não foi incorporado no edital da licitação. Fica a pergunta: como serão
custeados os equipamentos para os Armazéns A e B e quem será o responsável? Reafirmamos
a necessidade imperiosa desta previsão e reiteramos a contrapartida privada
como sendo a fonte destes recursos para que prevaleça o equilíbrio público-privado
da concessão do Cais do Porto.
Ampliação do
número de Armazéns a serem destinados para eventos culturais
Também propusemos que além dos
Armazéns A e B outros dois armazéns fossem destinados para eventos culturais de
grande porte ou mesmo feiras de interesse da cidade. O Cais Mauá tem sido palco
de muitos eventos tradicionais, como a extensão da Feira do Livro, a Bienal do
Mercosul, a Feira Internacional do Artesanato, entre outros. Estas atividades atraem
milhares de pessoas e dão vida e sentido ao local. A discussão, todavia, esbarrou
na necessidade alegada de destinar o máximo possível dos espaços dos Armazéns para
a futura exploração comercial pela concessionária privada.
A alternativa proposta pelo Estado
foi que o Edital estipulasse um número específico de dias por ano para este
tipo de evento. Propusemos então que fosse estabelecido o mínimo de 120 dias. Porém,
o Edital publicado definiu até 90 dias, por meio de agendamento pré-definido pelo
Estado, em Pavilhão específico composto por dois armazéns conexos. Entendemos
que esta diminuição do número de dias é prejudicial às necessidades de espaços
que são necessárias aos eventos culturais.
Condições para
avançar no uso público e cultural dos Armazéns A e B e Pórtico
Apesar dos limitados avanços verificados
diante do objetivo maior de recuperar o Cais do Porto e integrá-lo à cidade em
bases públicas, conforme os argumentos de nosso Projeto Diretrizes para a Ocupação Cultural do Cais do Porto de Porto
Alegre, entendemos que a destinação de dois armazéns junto ao Pórtico,
além de outros pontos acordados para assegurar o amplo acesso àquele espaço
urbano, são conquistas relevantes em relação ao projeto originalmente
apresentado pelo Governo do Estado/Consórcio Revitaliza/BNDES. Esta constatação
é ainda maior quando comparamos o tipo de ocupação prevista no primeiro projeto
de privatização, de 2014.
Temos convicção sobre o quanto a
cidade irá ganhar com o projeto voltado para a diversidade cultural e social
nos Armazéns A e B e Pórtico. E iremos prosseguir na busca desses objetivos em
conjunto com a comunidade de Porto Alegre e na negociação com as instituições
do Estado. Nesse sentido, dando sequência ao diálogo com a Secretaria de
Parcerias Estratégicas e a Secretaria da Cultura do Estado, propusemos, em
recente reunião (24/08/22), a continuidade do trabalho desenvolvido pela equipe
da UFRGS, agora voltado para o desenho do projeto a ser desenvolvido nos
armazéns públicos. Para isto, foram iniciadas tratativas com o Governo do
Estado, representado pelo Secretário Executivo de Parcerias, Marcelo Spilki, visando
o estabelecimento de convênio entre as duas instituições. Trata-se do Projeto para
Modelagem Administrativa,
Financeira e Arquitetônico-Urbanística para a gestão compartilhada entre Estado
e Sociedade Civil dos Armazéns A e B do Cais do Porto-RS.
Projeto de Extensão Ocupação Cais do
Porto Cultural - UFRGS
Luciano Fedozzi, Eber Pires Marzulo, Pedro Costa, Inês
Martina Lersch
Coletivo Cais Cultural Já
Jacqueline Custódio e Tania Farias